Hoje vou escrever um texto bem pessoal, não tem nada a ver com quadrinhos, mas se você quiser “ouvir” um pouco do que eu tenho para desabafar, sente aqui ao meu lado e conheça um pouco sobre o meu pai, e consequentemente, sobre mim. Caso contrário, pode passear pelo site e ler outras coisas, garanto que já tem muita coisa sobre quadrinhos aqui e garanto que ainda terá muito mais.
É 23 de Agosto de 2015 e se completam dois meses que perdi o meu pai. Acho que nenhum roteiro, tirinha ou desenho que eu já tenha postergado fazer tenha sido mais custoso para sentar e fazer do que este texto que eu precisava escrever. Principalmente porque sei que não vou conseguir escrever mais um parágrafo sem estar com os olhos lacrimejados, a garganta apertada e com o coração triste. Só estando sozinho em casa eu conseguiria entrar no estado de espírito necessário para expor tudo isso em texto, por isso escrevo agora.
Eu demorei semanas para entender que eu não o veria mais. Na hora que aconteceu, que eu o vi sem vida deitado na minha frente, eu entrei em um choque emocional, onde eu não sabia se não estava tão derrubado porque sabia de tudo que ele estava sofrendo nos últimos meses e agora não sofreria mais ou se era porque eu estava perdendo a noção da presença dele desde que a doença começou a ficar complicada e essa vez seria só mais intervalo na sua saúde e que logo voltaria para o seu lar. Quando vieram me buscar em casa na terça-feira a noite e disseram que o meu pai não estava legal eu já sabia o que tinha acontecido, mas durante a viagem de carro até o hospital eu simplesmente tentei não sofrer por antecipação. Ao chegar lá, minha mãe me entregou logo de cara que o meu maior medo tinha se concretizado: o corpo dele não tinha aguentado mais. Com o tempo, isso ainda depois do velório emocionante, a ficha foi caindo e cada vez que uma lembrança dele me vinha, ao invés de ficar mais fácil de lidar, ficava mais difícil.
Meu pai teve uma hepatite que nenhum médico entendeu ou achou tratamento adequado: se chama hepatite auto-imune, o que quer dizer que ela surgiu simplesmente e até ser descoberta demorou bastante. Não lembro exatamente quando foi, mais ou menos há uns 2 anos, mas ele teve um inchaço na barriga causado pelo fígado e a partir daí que a gente notou que a coisa era grave e que precisávamos encontrar um tratamento para isso de forma emergencial. Foram muitos altos e baixos, momentos de melhora e piora, sustos durante viagens, idas sofridas a São Paulo para exames e muitas semanas em observação em leitos de hospital.
No começo deste ano minha mãe conversou comigo sobre o transplante, se eu topava doar uma parte do meu fígado para o pai, e eu aceitei instantaneamente. Quem me conhece sabe que eu odeio lidar com agulhas, sangue, exames, cirurgias, cicatrizes, fraturas e etc. Tudo isso me causa uma aflição terrível, mas eu pus isso tudo num cantinho e fiz todo tipo de exame possível para ver se o meu corpo estava livre de doenças e se eu era um doador compatível. Foi um check-up completo que me deu sinal verde para ser doador vivo, só faltava o aval do médico. Mas o médico achou que era melhor não. Hoje revendo esse quadro eu não sei se ele já sabia da gravidade da situação e que não iria ser bom nem para ele nem para mim esta intervenção médica ou se realmente foi um erro ele não ter avaliado corretamente e decidido que o meu pai estava melhor do que realmente aparentava. De qualquer forma eu não guardo nenhum tipo de rancor quanto a isso, porque eu não vejo motivos para remoer essa decisão, afinal esse sentimento ruim só iria me causar mais desgaste.
Estou aqui falando sobre o Paulo Freitas enfermo, mas a parte que gostaria mais de lembrar é do Paulo Freitas ativo. Meu pai foi um homem lutador, por mais clichê que esta frase possa parecer endereçada a pessoas que se foram. Nascido na roça, no interior de São Paulo na zona rural da pequena cidade de Dolcinópolis, veio para Campinas já com uns 12 anos com a família humilde em busca de uma vida melhor. Família pobre, pais sem educação formal, aquela coisa de sempre, mas nem por isso ele ficou estagnado. Fez todo o ciclo estudantil, fez cursos, trabalhou como office boy e aprendiz desde muito jovem e sempre buscou ajudar em casa. Serviu o exército por alguns anos durante a ditadura, mas felizmente não violentou ninguém nem trouxe marcas dessa época. Estudou Engenharia Industrial pagando a faculdade do próprio bolso com seu trabalho de forma muito apertada e deu muito orgulho ao seu próprio pai sendo primeiro Engenheiro da família.
Conheceu a minha mãe trabalhando na mesma empresa e namoraram muitos anos até que firmassem matrimônio. Em 86 nasceu o meu irmão e em 90 foi a minha vez. Boa parte das minhas lembranças de infância eram da época da escolinha infantil dos meus pais, que era um sonho da minha mãe e que meu pai ajudou a construir e a dirigir durante mais de uma década. Depois meu pai foi trabalhar como secretário de escola e lá ficou até que a sua doença o afastasse do dia-a-dia escolar.
Pra quem não sabe, sou formado em Engenharia de Computação, um curso que nada tem a ver com o que faço aqui no site, tirando a parte de manutenção que tenho que dar de vez em quando. Desde muito cedo meu pai trabalhou com computadores e eu e o meu irmão sempre tivemos contato com máquinas do início dos anos 90. Na época ainda nem se falava em internet, os monitores eram em preto e branco, eu mal sabia escrever e já estava brincando em joguinhos em inglês. Daí o costume só seguiu e hoje sou o que sou porque ele criou esse caminho para mim. Sem desmerecer nem um pouco a enorme luta e a extrema capacidade da minha mãe como líder aqui em casa também, mas vou ser um pouco parcial hoje, porque é dia de falar dele.
Além de Engenheiro, meu pai também foi escoteiro por culpa minha, e ficou ainda mais alguns anos mesmo depois que me afastei. Me fez voltar ao Movimento Escoteiro para criarmos nosso próprio grupo com alguns amigos em 2012 e foi uma perda terrível para esta inciativa quando ele teve que se afastar devido à doença, porque ele tinha um poder de relação social que eu não reconhecia em mais ninguém, principalmente dentro do grupo, e foi difícil continuar tocando o trabalho lá sem ele. Tanto que acabamos decidindo parar pouco tempo antes de seu falecimento. E fizemos na última reunião, postergada pelo seu falecimento, uma homenagem verbal emocionante. Uma triste coincidência que a última criação do meu pai acabasse junto com a sua partida.
Meu pai era aquele cara que sem forçar a barra conseguia amizades em todos lugar que passava. Seu jeito simples e mesmo assim muito sério sempre trouxe pessoas incríveis para junto dele. Ele se envolveu com núcleos familiares da igreja mesmo sendo muito crítico do conceito bíblico de Deus e messias, ajudou a tocar movimentos sociais como os Vicentinos aqui na região, tentou até ser vereador, o que felizmente, segundo a minha mãe, não aconteceu.
É duro pensar que o mundo não tem mais esse cara incrível que ele era. Não consigo ser egoísta ao ponto de pensar que o mundo perdeu o meu pai. O mundo perdeu um grande homem de respeito, que com sua integridade criou filhos com caráter que ele muito se orgulhava, que amava sua esposa e a tratava com enorme amor e carinho, que soube driblar problemas financeiros mesmo nas nossas piores crises, e que só perdeu para a doença porque a medicina não tinha meios de resolver o seu problema.
Plantar uma árvore, ter um filho, escrever um livro: dizem que essas são as realizações básicas de um homem para deixar seu nome na história. Bom, Paulo plantou muitas árvores durante a sua vida, tanto reais quanto simbólicas, inclusive um coqueiro no nosso jardim que demorou muito a ter seu primeiro fruto, mas que ele conseguiu ver nascer nos seus últimos dias com saúde, e que hoje é o símbolo dessas sementes que ele plantou durante toda a vida. Os filhos ele criou com precisão e talento, isso posso afirmar vendo como eu e o meu irmão vivemos. No percurso reclamei muito de algumas decisões dele, mas hoje com o currículo que tenho e a idade em que me formei são as verdadeiras provas de que ele estava certo em atravessar minhas vontades de adolescente algumas vezes para que eu tivesse um futuro melhor. Nossos santos de vez em quando não batiam, isso é verdade, e durante a sua doença tivemos várias brigas desnecessárias que ele criava achando que eu o desmerecia devido às alterações de humor que seu cérebro já gerava, mas muito pelo contrário, eu tentava tratá-lo com o maior carinho possível. E eu não conseguia manter o clima de estresse com ele por muito tempo, porque eu sabia que aquilo era uma situação sem sentido. Já o livro ele escreveu enquanto eu ainda começava a minha faculdade e o qual eu ilustrei a abertura de cada capítulo. Na época foi um trabalho cansativo por causa da minha rotina, das minhas péssimas técnicas como artista e que não me agradou o resultado final, mas agora a história dele e a minha estão unidas de uma forma única, assim como o meu irmão e mãe que ajudaram na revisão. Quem se interessar em saber mais sobre a vida dele e adquirir o livro, teremos o maior prazer em passar esta tocante história de como ele saiu da roça até conhecer a minha mãe. Infelizmente a segunda parte da vida dele, a continuação de seu livro Engenheiros de Pau a Pique, não pôde ser escrita. Mas ainda existe muita coisa que ele escreveu que ninguém leu, pois essa era uma das paixões deste homem multifacetado: expor seus sentimentos em textos. Hoje tenho o HD do antigo computador dele ligado no meu, esperando um dia poder revirar as fotos e documentos dele e ter boas surpresas, mas isso ainda vai necessitar de mais um dia especial como esse que tirei hoje para meu dedicar a esta homenagem.
Sei que tudo que eu conseguir escrever aqui será injusto perto da grande obra dele. Mas este texto foi uma forma de eu transformar a dor que sinto hoje em algo bonito e também espremer o coração para me tirar estas lágrimas que não pararam de sair dos meus olhos enquanto escrevo. O choro lava a alma e agora me sinto um pouco mais limpo. Ainda bastante triste, mas realizado por ter conseguido vencer a barreira da angústia e conseguido cumprir meu objetivo.
Enquanto matutava sobre escrever ou não, porque não teria outra forma senão me abrindo para toda a internet, eu tentei entender a necessidade disso. Precisava desabafar, mas ao mesmo tempo sei que a rede é um caminho sem volta, uma vez que você expõe uma ideia ou opinião, lá ela existirá para sempre. Isso é um ponto positivo. Mas o negativo era que ele não está aqui para ler. Paulo Freitas não estaria aqui para se emocionar com seus filhos como ele sempre fazia, amaciando nosso coração. Foi esse problema que me fez pensar no verdadeiro alvo deste texto: o pedacinho de Paulo em cada uma das pessoas que tiveram contato com ele ou a minha família. Somos todos um pouco Paulo Freitas. Seja meu jeito de socializar e entrometer em grupos de assuntos do meu interesse ao ponto de trazer responsabilidades para mim que eu não precisaria arcar, seja meu jeito racional de encarar os problemas, seja meu pensamento técnico de Engenheiro que às vezes flui inconscientemente, seja meu respeito e amor pelas pessoas com quem opto por conviver. Tudo isso é um pedacinho dele, uma semente que ele assoprou no vento e germinou em cada um de uma forma diferente, mesmo nos amigos ou pessoas que ele viu poucas vezes.
É para essas sementes do meu pai que eu escrevi esta homenagem, e é para elas, vivas, que eu digo: Paulo Freitas, você foi uma pessoa maravilhosa, eu sempre tive muito orgulho de ser seu filho, obrigado por ter feito parte da minha vida estes 25 anos. Ninguém faria o seu papel na nossa vida melhor do que você.
Eu sempre te amarei.
Do seu filho, com muitas saudades.
Rodrigo Freitas.
PS: Deixo aqui uma música que me lembra o “ser pai” dele. Obrigado por ler.